segunda-feira, 18 de março de 2013

No Princípio



Eva estava de pé, ao lado da Árvore. As curvas bem desenhadas do seu corpo e a textura suave de sua pele contrastavam com a forma retorcida e a aspereza do tronco do vegetal. Adão percebeu, pela primeira vez, que ela era muito diferente dele próprio. Não era somente a voz delicada, os cabelos compridos ou o cheiro suave que exalava. Tudo nela parecia diferente, de uma maneira que ele nunca tinha notado antes. Sentiu um frio na boca do estômago e um formigamento que percorreu todo o corpo. Aquela era uma sensação nova e ele ficou confuso e desorientado.

Quando se aproximou, observou que Eva estava comendo um fruto. Seus lábios grossos abocanhavam a polpa com voracidade. O sumo que escorria pelo rosto, percorria o pescoço e deixava os seios molhados. Adão ficou por alguns instantes contemplando aquela cena sem dizer uma palavra. Então, algo aconteceu. O olhar dela o atingiu e seu corpo instintivamente respondeu ao estímulo. Ali na relva, à sombra da Árvore, ele a possuiu. Tornaram-se um só corpo novamente.

Após aquela explosão de desejo e luxúria, permaneceram deitados na relva, nus e suados, recuperando o ritmo da respiração, que ainda era ofegante. Adão contemplava o céu profundamente azul de uma tarde ensolarada. Naquele lugar, todos os dias eram belos. Não havia tristeza. A chuva banhava a vegetação densa somente por alguns minutos e no restante do tempo o Sol derramava sua luz e seu calor suavemente sobre o Jardim, proporcionando a mais bela visão que qualquer ser humano jamais teve da natureza.

- Esta não é a árvore da qual não deveríamos comer? – disse finalmente Adão, voltando ao estado racional.

- Sim, é esta. – Eva respondeu sem emoção na voz. - A serpente me disse que não haveria nenhum problema em experimentar um dos frutos.

- O Guardião do Jardim não pode saber. Seremos punidos. Ele foi bem claro...

- Não me importo – ela o interrompeu antes que seus lamentos se tornassem insuportáveis. – Sou livre para fazer o quiser. Foi o que Ele nos disse.

- Mas esta foi a única coisa que nos pediu para que não fizéssemos – lamuriou-se Adão mais uma vez.

- Está arrependido? – Ela o encarou com seus expressivos olhos cor de mel e a boca carnuda entreaberta num sorriso malicioso.

Adão não respondeu. Apenas a beijou como se quisesse devorá-la, enquanto suas mãos percorriam o corpo, acariciando os seios firmes, descendo pela barriga e virilha, apertando suas coxas e, finalmente, encontrando seu sexo úmido e inchado. Ele a possuiu outra e mais outra vez, até não ter mais energia em seu corpo. Ambos adormeceram com o crepúsculo, entrelaçados sob a proteção dos galhos frondosos da Árvore da Vida.

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Ocultos na vegetação, a Serpente e o Guardião do Jardim assistiram à cena em silêncio, pois não ousariam interromper. Eles se encararam por algum tempo, mas nada disseram até que os amantes adormecessem.

- Eu venci – disse a Serpente, com seu sorriso de triunfo iluminado pela pálida luz da Lua Crescente.

- Você trapaceou. Não era isso que tínhamos combinado – os olhos do Guardião do Jardim brilhavam com uma fúria incontida.

- Não seja um mau perdedor. Olhe para eles. – a Serpente apontou para Adão e Eva adormecidos sob a Árvore. – Estão dormindo como anjos, após terem feito durante toda a tarde aquilo que você disse que não fariam.

- Você enganou a mulher. Foi trapaça. – O Guardião mal podia disfarçar sua vergonha pela derrota.

- Não havia outra maneira. Você deveria saber disso quando me propôs essa aposta. O desonesto foi você, ao inventar regras impossíveis de serem cumpridas – falou a Serpente já farta daquela discussão.

- Quando Ele souber, nosso castigo será ainda pior do que o deles. – balbuciou o Guardião, agora com medo no olhar.

- Não se preocupe. – falou a Serpente com a expressão de quem estava no domínio da situação. – Eu assumirei toda a responsabilidade. Ele não ousará castigar seu filho mais belo, a Estrela da Manhã.

O Guardião do Jardim assentiu e se esgueirou para longe daquela cena, porque o Sol estava prestes a nascer e ele não queria estar por perto quando tudo viesse à tona.

A Serpente permaneceu ali, observando os amantes enquanto dormiam. Imaginava como Ele reagiria àquele acontecimento e o que diria a Adão e Eva por terem desobedecido sua única ordem.


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Quando os primeiros raios de sol da alvorada surgiram no horizonte, o Senhor do Jardim já se encontrava de pé, imóvel e impassível, diante da Árvore da Vida e do casal que dormia sob a proteção dos galhos frondosos.

Adão foi o primeiro a acordar. Levantou-se assustado com a visão que tinha diante de si.

- Senhor... – foi a única palavra que conseguiu balbuciar. Sua voz desapareceu assim como sua coragem.

Eva abriu os olhos calmamente, quase como se já estivesse preparada para o que veria. Sua expressão demonstrava uma despreocupação que resvalava na arrogância. Ela também se dirigiu ao visitante, mas seu tom foi o de um cumprimento formal:

- Senhor. – disse ela com um ligeiro movimento de cabeça.

Naquele dia, o Senhor do Jardim tomara a forma de um velho, com barba e cabelos brancos e longos. Estava vestido de forma simples, com uma túnica alva de linho e sandálias de tiras. Não havia adornos nem nada que o identificasse, mas eles sabiam exatamente quem Ele era no momento em que o viram. Ele costumava adotar formas diferentes sempre que descia ao Jardim e era a primeira vez que se parecia com um humano.

- Querem me falar sobre o que fizeram? – disse ele numa voz calma e apaziguadora.

- A Serpente me iludiu – falou Eva, sem se alterar – me disse que se comesse do fruto nada de mau me aconteceria.

- Então por que você acha que eu proibí que se comesse dessa Árvore? Teria eu mentido? – Indagou o Senhor do Jardim, com os olhos fixos em Eva.

- Minha curiosidade foi mais forte do que meu medo – retorquiu Eva. – Não sei dizer sobre suas intenções.

O olhar Dele começava a incomodá-la e subitamente sua nudez se tornou desconfortável. Teve vontade de se esconder, mas não sabia como, nem porque estava sentindo aquilo.

Durante todo o tempo, Adão permaneceu imóvel, apenas observando o diálogo. Sentia-se uma vítima da sedução de Eva e, ao mesmo tempo, tinha consciência de que deveria ajudá-la a se explicar, afinal ela não fizera nada sozinha. Quando, no entanto, pensou em algo para dizer, não houve chance, porque o Senhor levantou sua mão direita espalmada, pedindo silêncio e atenção.

- Vocês fizeram precisamente o que Eu esperava que fizessem.

Uma expressão de espanto e confusão percorreu os olhos do casal, que agora estava de mãos dadas, num gesto proteção mútua.

E o Senhor do Jardim, prosseguiu:

- Eu os criei e coloquei aqui nesse Jardim para que se conhecessem e se tornassem companheiros de jornada. Seu destino não está preso a este lugar e eu nunca esperei que permanecessem castos. Muito pelo contrário. Vocês cumpriram sua tarefa muito bem.

 A confusão era evidente na expressão que percorria os rostos de Adão e Eva. Estavam certos de que seriam punidos por sua desobediência, mas ao que parecia, seriam recompensados. Adão encontrou discernimento para perguntar:

- O que acontecerá conosco agora?

- Vocês deverão deixar o Jardim e procurar seu próprio caminho. Haverá dificuldades e todo tipo de perigos nessa jornada, mas também haverá ótimos motivos pelos quais lutar e perseverar. Certamente encontrarão mais seres semelhantes a vocês. Alguns serão amistosos, outros hostis. Caberá a vocês se unirem aos primeiros para que possam se proteger dos demais. Vão e explorem o mundo, multipliquem-se e evoluam, é tudo que lhes peço.

- O Senhor continuará nos ajudando e protegendo como tem feito até agora? – perguntou Eva.

- Não – respondeu o Senhor sem emoção na voz. – Minha missão aqui está cumprida e há outras tarefas que me aguardam. Vocês comeram da Árvore da Vida e agora têm o conhecimento que precisavam para percorrem sozinhos o seu caminho. De agora em diante farão suas próprias escolhas e serão responsáveis por suas vidas. Vão e escrevam sua própria história.

Adão e Eva não disseram uma palavra. Apenas deram as mãos e partiram sem olhar para trás. Atravessaram o portão do Jardim, passando ao lado do Guardião, que estava em pé, estático em seu posto de sentinela. Ele os observou até perdê-los de vista e, em seguida se voltou para o Senhor do Jardim, indignado:

- Senhor! Por que fez isso? Por que mandá-los para o mundo exterior? Não percebe que é uma crueldade? Há muitos perigos lá fora.

- Eu entendo sua preocupação, Guardião – disse o Senhor calmamente. – Mas eles não foram feitos para o conforto da ilusão. Precisam ganhar o mundo e serem senhores de seus destinos. Foram criados para a liberdade, não para viver numa gaiola.

Aquele discurso não apaziguou os ânimos do Guardião e ele prosseguiu em sua revolta:

- A Serpente os enganou. Jamais teriam comido do fruto se ele não tivesse ludibriado a mulher. O Senhor devia puni-lo.

Nesse momento, a Serpente se aproximou para tomar parte na conversa. Tinha forma humana, apesar da alcunha que recebera por preferir a forma de uma cobra quando descia ao Jardim, pois podia espreitar por entre os galhos das árvores sem ser visto.

 - Eu apenas cumpri minha parte da missão, meu caro Guardião. – disse a Serpente com um sorriso irônico nos lábios.

A expressão no rosto do Guardião era de espanto e indignação.

- Eu precisava apressar as coisas. – completou o Senhor. – Sob a sua proteção paternalista eles jamais ousariam me desobedecer. Então enviei a Estrela da Manhã para que provocasse neles o desejo pelo conhecimento que eu negara.

- Mas eu não entendo. – retorquiu o Guardião. – Por que dizer a eles que o conhecimento era proibido se era isso que esperava que fizessem? Por que simplesmente não entregou a eles os segredos da Árvore da Vida?

O Senhor do Jardim sorriu com complacência.

- Era preciso plantar neles o desejo, a vontade, a curiosidade e a iniciativa. Não os criei para serem dependentes de mim. Criei-os para serem livres e donos de suas próprias vidas. E para que possam sobreviver e evoluir é necessário que busquem o conhecimento por si mesmos. Não podem esperar que eu os proteja e alimente para sempre. Estão por conta própria agora e isso fará deles fortes e independentes, capazes de qualquer proeza. Basta que acreditem em sua capacidade.

Sem ter argumentos para prosseguir, o Guardião do Jardim se limitou a encarar a Serpente com ódio. Aquela Víbora que o Senhor chamava de Estrela da Manhã o havia feito de idiota.

- Você deverá permanecer aqui e garantir que nenhum humano encontre este lugar. –disse o Senhor ao Guardião, num tom que não admitia discordância. – Vou partir e não pretendo voltar. Estrela da Manhã virá comigo.
A Serpente fez uma reverência ao Guardião e se despediu com um sorriso cínico nos lábios:

- Adeus, meu bom amigo. Perdoe-me se o magoei, mas entenda que o engodo e a ilusão são meus dons e minha arte, assim como a firmeza e a rigidez são os seus. Ambos cumprimos nossos papéis nesta grande peça.

O Senhor do Jardim e a Serpente desapareceram no ar da manhã e o Guardião ficou ali, sozinho com seus pensamentos. Ele cumpriria sua missão de proteger o Jardim Secreto e, certamente, nenhum homem jamais seria capaz de encontrá-lo. Porém, o Senhor jamais disse que ele não poderia encontrar os descendentes de Adão e Eva e até mesmo falar com eles.

EPÍLOGO

O Príncipe do Egito regressava de uma viagem quando parou no alto de uma colina para apreciar a vista. Sob a sombra de uma árvore ele se sentou para descansar, beber um pouco d’água e contemplar o por-do-sol refulgindo nos telhados da cidade onde crescera.

Era uma linda visão e ele permaneceu ali por algum tempo até que adormeceu, vencido pelo cansaço da longa caminhada.

Em seu descanso sonhou com um homem alto, todo vestido de branco, com asas de pássaro nas costas e uma espada flamejante. O homem sabia seu nome e falava com ele, mas o Príncipe não conseguia responder.

- Ouça com atenção o que vou lhe dizer e escreva tudo assim que acordar. Não perca uma só palavra, pois sou um mensageiro do Senhor. No princípio...


3 comentários:

  1. Incrível cara, você escreve muito bem. Não pare de escrever nunca. Estou no aguardo para mais textos.

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    1. Obrigado pelo elogio, Victor. Escrevo por hobby e não tenho grandes pretensões literárias, mas é ótimo saber que existem pessoas que gostam dos meus textos. Isso me incentiva a aprimorar ainda mais minha escrita. Um grande abraço e obrigado pelo comentário.

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  2. É muito prazerosa a leitura deste texto. É a leitura de um expectador da leitura de um artista das letras. Sob o seu comando, o teclado produziu uma interessante alternativa ao ensinamento bíblico que vale muito a pena ser explorado, letra a letra, levando o leitor à involuntária reflexão comparativa, dando a ele ainda mais elementos para que se posicione perante si mesmo, independente da formação religiosa. Um texto que não agride, nem ilude;que faz tão bom uso dos anseios humanos de viver num mundo sem morte, sem dor, sem frio nem calor; que cumpre a tão importante missão de não ser impositivo, estimulando assim o senso crítico de cada um - faceta humana cada vez mais relegada ao desuso.
    Eu lhe cumprimento alegremente pela qualidade do seu texto e, sobretudo, pela sua dedicação na formação de suas opiniões e conceitos acerca de elementos tão importantes na vida humana.
    Finalmente, quero fazê-lo saber que o seu blog é muito bem montado e atraente, com ilustrações que se relacionam proximamente aos temas que representam.
    Você tem excelente dinâmica entre criação e domínio tecnológico. O resultado é esta maravilha.
    Siga em frente.Nós agradecemos.
    Forte abraço!

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