A paisagem era linda: uma floresta de pinheiros na
encosta de uma colina. O rumor do rio, que corria num leito de pedras no fundo
do vale, era o único som que se podia ouvir enquanto o crepúsculo tingia o mundo de vermelho. Nada disso, entretanto, importava
a Dmitri. Sua respiração estava ofegante, o suor e a expressão de dor em seu
rosto denunciavam mais sua idade do que os cabelos brancos em suas têmporas.
Mesmo assim, ele não parava de correr. Continuar significava a diferença entre
a vida e a morte. Ele corria sem parar, sem olhar para trás, mas seu fôlego de homem
velho não agüentaria por muito mais tempo. Era preciso encontrar um esconderijo
antes que anoitecesse, ou ele não teria chance.
Paradoxalmente, enquanto tentava se concentrar na tarefa
primária de sobreviver, a mente de Dmitri divagava e o levava numa viagem pelo
passado. Sua memória parecia zombar dele, fazendo-o lembrar-se de tempos há
muito afundados no oceano do esquecimento. Uma época em que não existia a
parafernália tecnológica com que seus inimigos agora o perseguiam e onde a
inteligência, a astúcia, o treinamento e a disciplina eram as armas fundamentais de um espião. Os equipamentos fantasiosos e
os carros esportivos fizeram a fama de James Bond, mas os verdadeiros agentes
secretos não viviam naquele mundo de ilusão do cinema. Dmitri Czonakos fora o
melhor agente da Cortina de Ferro ou, ao menos, um dos únicos que nunca foi apanhado. Inúmeras vezes realizara missões bem sucedidas sob os narizes dos
americanos. Nunca fora descoberto.
Agora, no entanto, sua situação beirava o desespero. Os
garotos que o encurralavam pela floresta tinham tudo o que a moderna tecnologia
podia dispor de mais eficiente para uma caçada humana: rastreadores GPS, óculos
de visão noturna, detectores de calor e muitas outras bugigangas que ele nem
sequer sabia que existiam. Eles não tinham nem um décimo de sua experiência,
não sobreviveriam um minuto sem seus brinquedos, mas não precisavam disso, seus
métodos eram diferentes e ele estava em desvantagem. Dmitri sabia que sua
astúcia não o manteria vivo por muito tempo, afinal eles estavam em maior
número, eram mais jovens e estavam equipados até os dentes. No âmago de sua
consciência ele sentia que o momento derradeiro estava próximo, mas isso não o
dissuadia. Jamais desistiria. Nunca deixaria de lutar. Mesmo tendo convivido
toda sua vida com mentira e traição, ele tinha seu próprio código moral, sua
versão distorcida e particular do código do guerreiro. Por isso levaria seus
segredos e, se possível, seus perseguidores, para o túmulo.
Os pensamentos e lembranças se dissiparam no momento em que
avistou um casebre abandonado. Buscando abrigo e descanso, arrombou com
um chute a porta de madeira apodrecida. Ao entrar, descobriu
rapidamente que o lugar não estava tão abandonado quanto parecia. Havia restos
de comida e bebida sobre uma velha mesa e algumas trocas de roupa penduradas
num cabide improvisado com arame. Alguém estivera ali há pouco tempo, ou talvez
ainda estivesse. Seus olhos percorreram o ambiente e logo
avistou alguns caixotes de madeira empilhados num canto escuro. Em seu interior
Dmitri descobriu explosivos suficientes para arrasar um quarteirão. Na
certa aquele era um refúgio de mineradores, um lugar onde guardavam suas
ferramentas e faziam suas refeições.
Cinco minutos era todo o tempo de que dispunha, talvez menos. Teria
que bastar. Se quiserem
arrancar a informação antes de me matar terão que entrar aqui,
pensou ele enquanto preparava aquela que deveria ser a última armadilha de sua
vida. Sua mente agora estava serena. Morreria, é verdade, mas levaria seus segredos
e seus perseguidores junto.
Assim que terminou sua obra-prima da pirotecnia, os passos
apressados já podiam ser ouvidos se aproximando do casebre. Seu coração
disparou e ele, que sempre fora frio e inabalável, soube que a caçada tinha
chegado ao fim. Dentro daquele lugar ele estava cercado, preso numa maldita
ratoeira explosiva.
Dmitri se sentou numa velha cadeira de madeira, de frente para a porta e apenas
aguardou que os garotos invadissem o lugar para pegá-lo. Eles não atirariam,
porque ele só tinha valor se estivesse vivo e pudesse falar. Ao baixar a vista,
percebeu que havia um alçapão muito bem disfarçado entre as velhas tábuas do
assoalho. É claro, a mineração era proibida naquela região, nada mais lógico do
que haver um esconderijo mais seguro e eficiente sob aquela choupana. Seu olhar
se iluminou e um pensamento o fez sorrir com a expressão de quem vê a chama da
vitória novamente acesa. Antes de descer pelo alçapão, pegou uma velha caneta
esferográfica no bolso e um pedaço de papel de uma caderneta surrada onde fazia
suas anotações.
O local foi cercado e dois jovens agentes americanos
aproximaram-se cautelosamente da porta entreaberta do casebre abandonado,
enquanto o restante da equipe dava cobertura. As tábuas corroídas pelos cupins
rangiam sob seus pés reclamando do peso. Num movimento coordenado
invadiram a velha choupana empunhando suas armas. Não havia nada, nenhum sinal
do fugitivo. Vasculharam o banheiro e um pequeno quarto nos fundos, mas não
encontraram ninguém.
Entreolharam-se buscando um no outro uma resposta que nenhum
dos dois tinha: onde estaria
ele? Nesse momento um dos agentes
detectou um ruído metálico intermitente: tic,
tac, tic, tac. Sobre um caixote de
madeira, num canto, havia um velho relógio despertador, daqueles que se dá corda
para funcionar e que têm uma campainha estridente na parte de cima. Um dos
agentes se aproximou com cuidado e pegou um pedaço de papel que estava preso ao
relógio. Só havia duas palavras escritas em letras grandes de fôrma: GAME OVER.
Ao se darem conta do que aconteceria já era tarde demais. Uma enorme explosão
transformou a noite em dia por um segundo e o casebre dos mineradores se
transformou num amontoado de destroços fumegantes.
Há uns cem metros dalí, uma pequena gruta, com uma abertura
estreita esculpida na rocha, se revelava a saída de um túnel de fuga que partia
do esconderijo sob o casebre de mineradores. Um par de velhos olhos astutos
examinou o novo ambiente e decidiu que era seguro sair. As pernas estavam
trêmulas de cansaço e o fôlego ainda era curto, mas um sorriso discreto foi
iluminado pelo clarão do incêndio que se espalhava pela velha floresta de
pinheiros e, embriagado pelo próprio triunfo, ele falou com uma voz rouca e um
sotaque inconfundível:
- Deviam respeitar os
mais velhos...
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