segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O Prisioneiro


O prisioneiro abriu lentamente os olhos. Estava acorrentado a uma cadeira. Não podia se mover, porque a cadeira estava firmemente parafusada ao chão. Ele sabia que ela havia sido preparada especialmente para recebê-lo.

- Você conhece a lenda de Prometeu? – indagou o captor.

Nenhuma palavra saiu da boca do prisioneiro. Suor escorria de sua testa e se misturava ao sangue seco. Estava nu. Havia uma enorme ferida ensangüentada onde antes estivera sua orelha esquerda. Três dentes quebrados, duas costelas trincadas e dois dedos dos pés esmagados a marteladas. Ele resistiu muito mais do que se poderia esperar antes de desmaiar.


O captor estava sentado, de frente para o prisioneiro. Seu cabelo molhado de suor, suas roupas salpicadas de sangue, em suas mãos havia um alicate-de-ponta, com o qual ele brincava nervosamente enquanto falava.


- Prometeu era um titã, uma raça mitológica, que deu origem aos deuses gregos. Ele amava a humanidade e por isso entregou ao homem o segredo do fogo – disse o captor. – Por seu crime, foi sentenciado a passar a eternidade acorrentado a um rochedo. Durante o dia suas entranhas eram devoradas por uma ave, à noite suas feridas eram curadas, apenas para que ele sofresse de novo no dia seguinte.

O prisioneiro continuava em silêncio. Sua cabeça pendia para o chão, mas o captor sabia que ele estava consciente.

- Esse é o tipo de castigo que você merece. Nenhuma punição é suficiente para o seu crime. – fez uma pausa e respirou fundo. - Infelizmente, se eu arranjar uma ave para devorar suas tripas, você não vai ressuscitar amanhã – falou o captor, enquanto retirava algo do bolso da camisa.

Ele puxou a cabeça do prisioneiro pelos cabelos, de forma que pudesse encará-lo. Colocou uma fotografia em frente ao seu rosto. Era uma garotinha. Ela sorria enquanto se balançava num brinquedo de parque. Parecia ter 6 ou 7 anos e seus cabelos castanhos brilhavam à luz do Sol.

- Olhe pra ela – murmurou o captor. – OLHE PARA ELA! – repetiu, dessa vez gritando com todo o ar que tinha nos pulmões.

O prisioneiro observou a foto.

- Eu já disse que sinto muito – balbuciou ele. – Não posso trazê-la de volta, não posso desfazer o que está feito. Nem você pode. Não importa o quanto me torture.

O captor ficou furioso. Seu punho fechado atingiu o rosto do prisioneiro em cheio, triturando o osso malar. A dor era lancinante, mas não havia mais força naquele homem para que pudesse soltar um grito de agonia.

Ele poderia estar ali há horas, ou há dias. Não era possível ver nem ouvir nada do mundo exterior. Possivelmente estavam num porão ou num subsolo muito profundo. Ele não saberia dizer, porque fora levado até lá desacordado.

Depois de tudo o que passara até aquele momento, não se importava mais em morrer. Ele até desejava a morte, ansiava pelo descanso e pelo fim da dor. Torcia para que não houvesse um inferno, mas até mesmo essa possibilidade lhe parecia melhor do que permanecer ali.

Finalmente, reunindo o pouco de lucidez e fôlego que ainda tinha, o prisioneiro falou com uma voz fraca, mas surpreendentemente clara:

- Você não é melhor do que eu.

- Do que está falando? – indagou o captor, num misto de surpresa e indignação.

- É isso mesmo – continuou o prisioneiro – você está usando sua filha como uma desculpa para fazer o que está fazendo comigo.

- Você enlouqueceu. Devo ter te batido forte demais. Você violentou e assassinou uma criança inocente e depois se livrou dela como se fosse um cachorro sarnento. – as lágrimas escorriam no rosto do captor, enquanto ele olhava para a foto e em seguida para o prisioneiro. – Você é um monstro, um demônio.

- Eu sei que meu crime é imperdoável – as palavras ficaram presas em sua garganta por alguns instantes – mas você está sentindo prazer em me torturar. O mal que você me faz não é diferente do mal que fiz a sua filha. A diferença é que eu não me escondi sob o disfarce da vingança. Eu apenas segui minha natureza.

O captor permaneceu imóvel. Sua cabeça dava voltas se lembrando de sua pequena filha, dos últimos momentos em que estiveram juntos. Ele olhava fixamente para a fotografia em sua mão. Finalmente, ele encarou o prisioneiro e disse:

- Talvez você tenha razão. Talvez o seu sofrimento me dê prazer, mas eu jamais faria isso se você não tivesse tirado de mim o que eu tinha de mais precioso. Você destruiu toda a inocência e beleza que eu poderia ver no mundo. Não há mais nada para mim. Não há esperança, não há sonhos, nem alegria. Tudo que sinto é uma dor profunda que esmaga meu peito e não me deixa respirar.

- Quebrar meus ossos encheu seus pulmões de ar? – perguntou o prisioneiro em tom de desafio. – Cada soco, chute e martelada que eu recebi foram analgésicos pra sua dor? Tenho certeza que não. Mas isso não importa não é? Você vai continuar até que eu esteja morto. E depois? Quem vai ser a próxima vítima? Quem vai aplacar sua dor servindo de saco de pancadas? Quando menos esperar você terá se tornado alguém muito pior do que eu.

O captor respirou profundamente, se levantou e foi até um velho aparelho de TV que estava encostado à parede que ficava de frente para o prisioneiro. Quando ligou o televisor surgiu a imagem de um prédio em ruínas. A área em volta do edifício estava cercada e um repórter narrava as imagens:

- A qualquer momento agora as dinamites serão detonadas e o antigo conjunto residencial será implodido para dar lugar às modernas instalações...

O captor encarou o prisioneiro, agora já sem ira no olhar. O repórter na TV continuava falando sobre as toneladas de destroços que a implosão geraria e como levaria semanas para se retirar todo aquele entulho. Finalmente o captor falou:

- Você provavelmente tem razão. A verdadeira natureza humana é a maldade. O bem precisa ser aprendido e cultivado, mas basta um pequeno empurrão, um desequilíbrio e pronto: lá estamos nós matando, estuprando, roubando, invadindo países e flagelando nossos semelhantes. Tudo de que precisamos é de uma boa desculpa, uma justificativa. Pode ser a vingança, a justiça, a soberania, a liberdade, não importa, qualquer causa serve para nos deixar mais confortáveis, para justificarmos para nós mesmos porque somos maus, porque sentimos tanto prazer em destruir, esmagar, dilacerar.

- O seu discurso é muito bonito e eloqüente, mas agora você vai me deixar aqui para morrer soterrado. Estamos no subsolo desse prédio que aparece na TV, não é? – disse o prisioneiro. – Você vai livrar o mundo de um monstro, mas nem percebe que também se tornou um.

O captor foi até a porta e a destrancou. O homem na TV continuava falando e agora havia um relógio em contagem regressiva onde faltavam 5 minutos para a detonação. Em seguida ele foi até a cadeira e soltou todas as amarras que prendiam o prisioneiro.

- Sua vida e sua liberdade estão à sua frente. Ainda há tempo para você escapar. – disse o captor, sem qualquer emoção na voz.

- Você não vai? – perguntou o prisioneiro.

- O mal está entranhado em todos – disse ele calmamente – mas alguns de nós ainda sabem que têm escolha.

O prisioneiro foi até a porta e a trancou novamente. O repórter na TV soltou uma exclamação no momento em que relógio chegou ao zero.

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