segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A Escadaria

A escadaria era íngreme, mas ele nem se dava conta da dor em suas pernas, nem do suor que escorria pelo rosto. Nada mais importava. Sua busca acabaria no final daquela sucessão interminável de degraus.

Estava em um prédio antigo, no centro da cidade. O letreiro sobre a porta de entrada dizia apenas: “hotel”. Não era o Caesar ou o Ritz, não havia tapete vermelho, nem manobrista à porta. Era apenas um local sem nome, perdido no submundo. O lugar perfeito para quem não queria ser notado.

Degrau após degrau, cada passo o deixava mais próximo do seu objetivo. Sua mão deslizou sob a camisa e encontrou o cabo da faca. Quanta ironia. Aquele objeto havia sido um presente dela. Ele revivia em sua mente atormentada aqueles momentos que agora mais pareciam um sonho distante. Talvez nada daquilo tivesse realmente acontecido.

- Trouxe um presente pra você! – disse ela entrando pela porta.

- Mas hoje não é meu aniversário.

- Você sabe que eu gosto de fazer surpresas – o sorriso dela iluminava o ambiente. – Abra logo esse pacote!

- Você não tem jeito mesmo – riu sem graça, constrangido por nunca se lembrar de surpreendê-la da mesma forma, apesar de saber o quanto ela gostava disso. – É uma faca de caça! Nem sei o que dizer! Muito obrigado, meu amor.

- Que bom que você gostou! Eu me lembrei de quando falou sobre como a sua velha faca de caça estava desgastada e sem corte. – Ela sorriu e o beijou, de uma forma que nenhuma pessoa no mundo poderia beijá-lo.

O devaneio se desfez e ele estava de volta à escadaria do hotel. Apenas metade do caminho tinha sido percorrido. Não era preciso ter pressa. Um carpete velho e gasto cobria os degraus, abafando o som dos passos inseguros. Seus movimentos eram tão lentos que pareciam dizer aquilo que ele não tinha coragem de admitir. Não desejava se deparar com a cena que estava se desenrolando atrás de uma porta suja, no fim do corredor.

A mão que segurava a faca estava transpirando. Aquele lugar era quente, úmido e cheirava a mofo e fumaça de cigarro. As laterais da escadaria eram recobertas por um papel de parede velho e encardido. Como uma criança que vê figuras nas nuvens, ele enxergava rostos deformados na estampa. Eram como almas atormentadas que pareciam encará-lo enquanto subia. Esses demônios riam dele e de sua demanda patética. Eles falavam com vozes que existiam apenas em sua mente insana:

- Covarde! Fraco! Você não é capaz de fazer isso. Desça e volte para sua vidinha medíocre. Engula essa humilhação. – as vozes o insultavam e zombavam dele com uma risada abafada.
Ele tentava ignorar os demônios. Sabia que não eram reais. Não poderiam ser. Entretanto, seus pensamentos estavam confusos. Lembrava-se dos bons momentos viveram juntos, de toda a felicidade, dos passeios no fim-de-semana, das sessões de vídeo com pipoca nas tardes de domingo. Em que momento tudo aquilo havia terminado? Quando sua vida tinha se tornado o inferno que era agora?

Faltavam poucos degraus e já era possível ver a porta no fim do corredor. O número 13 estava pendurado por um prego enferrujado. Um barulho leve e repetitivo preenchia o ambiente, era o rangido das molas da cama misturado aos gemidos dos amantes. Sua raiva aumentou. O ódio e a humilhação percorriam seu corpo, envenenando seu sangue, fazendo inchar a veia em sua fronte.

Ela estava ali, num quarto de hotel barato, sendo possuída por um desconhecido qualquer. Provavelmente mais jovem e mais bonito do que ele jamais fora. Alguém que certamente não sabia, ou não se importava com o que estava em jogo.

A porta estava diante dele. A escadaria fora vencida e, com ela, seus medos e receios. Cada um dos degraus havia sugado uma lembrança, um momento perdido num tempo que não voltaria mais. O punho direito apertava o cabo da faca, com a certeza de que não havia mais volta. Sua desgraça seria lavada no sangue imundo deles. Morreriam juntos, nus, vítimas da humilhação e da dor que provocaram.

O homem bêbado e maltrapilho que estava no balcão ao pé da escada havia lhe entregado a chave do quarto em troca de um punhado de notas miúdas. Não seria preciso arrombar. Não queria que se assustassem e parassem o que estavam fazendo. Ele queria ver. Queria ter certeza de que aquilo estava realmente acontecendo.

O ruído continuava. Ainda mais forte. As molas da cama rangiam com o vigor dos movimentos. Eles gemiam de prazer e excitação. E isso o feria. Cada repetição daqueles sons profanos rasgava sua alma e o atirava num poço de vergonha e sofrimento.

Finalmente, a chave foi introduzida na fechadura e girada lentamente, duas vezes para a direita. A mão esquerda segurou firme a maçaneta, na direita a enorme faca de caça estava em posição. Não havia mais nada que o impedisse. Foram meses de brigas, ciúmes, desconfiança e choro. A vida arruinada por uma obsessão. Ela dizia que nada havia mudado, que tudo aquilo era apenas loucura e paranóia criadas pela mente perturbada dele.

Agora toda aquela mentira seria desmascarada. Faltava apenas o golpe final. Um movimento preciso da faca e todo o sofrimento terminaria. A dor e a humilhação seriam redimidas num breve ato de violência e desespero.

A porta se abriu. O quarto era pequeno. À direita havia uma janela com cortinas velhas empoeiradas e uma mesa de madeira onde repousavam uma garrafa de vinho barato e duas taças de vidro. Roupas estavam espalhadas pelo chão. À esquerda havia um armário de madeira escura e um banheiro, de onde saía um odor forte de desinfetante de pinho. A cama ficava ao centro, com os pés virados para a porta de entrada.

Eles não perceberam sua entrada. Estavam de costas para a porta. O amante estava ajoelhado sobre a cama e a possuía como um animal, segurando-a pela cintura e fazendo movimentos firmes e vigorosos. Ela gemia e remexia os quadris, envolvida num êxtase de luxúria. A cena se desenrolava diante de seus olhos. Nada de mentiras, nada de desculpas. A dor da verdade o atingia como um soco no estômago.

Ele hesitou por um instante, mas as vozes dos demônios da escadaria voltaram, então eles os fez se calarem. A faca descreveu uma curva perfeita no ar e atingiu as costas do amante, dilacerando seu pulmão. Sobressaltada, a mulher soltou um grito de pavor. Ela olhou para o homem de pé, com a faca coberta de sangue e em seguida para o amante, caído numa poça de sangue sobre a cama.

O homem olhava para ela com ódio e vingança queimando em suas pupilas, mas, antes de avançar para desferir o golpe fatal na traidora ele olhou para o rosto do responsável pela sua desgraça. Aquele que havia destruído seus sonhos e lhe tirado a paz de espírito e a vontade de viver. Um arrepio percorreu sua nuca ao identificar o moribundo.

- Você! Não... – sussurou com a voz rouca embargada.

Lágrimas rolaram por seu rosto e a faca escorregou de suas mãos trêmulas para o chão. Subindo de joelhos na cama, ignorou a mulher ainda nua e confusa e gentilmente tomou o rapaz nos braços, enquanto o sopro da vida ainda não o havia abandonado.

O jovem amante o olhou diretamente nos olhos e disse com dificuldade, por causa do sangue que subia por sua garganta:

- Perdão – falou com um engasgo. – Até ontem eu não sabia quem ela era.

O homem apertou o rapaz em seus braços enquanto as lágrimas incessantes caíam sobre seu corpo nu. Não disse nada quando ele finalmente morreu. Apenas fechou seus olhos com cuidado e o beijou na testa.

Ele agora encarava a esposa incrédula. Seus olhos não tinham mais ódio. Sua vingança se transformou numa tristeza profunda e cortante, que perfurava a alma como a faca fizera com a carne do amante que ele e sua esposa compartilharam sem saber. Sua vida toda tinha sido uma sórdida mentira e ele acabara de destruir a melhor chance que teve de viver um sentimento verdadeiro.

Sem dizer nenhuma palavra, a mulher se vestiu lentamente. Ela então puxou o marido pela mão, deixando o cadáver e a faca para trás. Ao saírem do quarto, ela disse simplesmente:

- Vamos para casa.

Enquanto desciam a escadaria os rostos na parede o encaravam. Ele não queria ouvir o que tinham a dizer.

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